quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

SESSÃO 6: O MILAGRE DE MILÃO



O MILAGRE DE MILÃO (1951)

"Miracolo a Milano" resulta de uma nova colaboração entre de Sica e Zavattini, desta feita adaptando um romance deste último ("Totò il buono"). Trata-se de uma curiosa variante do neo-realismo, pois apesar de tudo se passar na mais pura e desabrigada realidade social italiana do após guerra, o tom não é realista, mas parabólico. Na verdade, como o próprio título indica, estamos hipoteticamente no campo do milagre, com o aparecimento na Terra de um bebé, Totò, que é adoptado pela velha Lolotta, quando descoberto no meio das couves da sua pequena quinta. Tratado como um filho, Totò revela-se um ser diferente de todos os outros. Mais tarde, por morte de Lolotta, a criança é entregue a um orfanato, donde sai adulto (no plano imediatamente seguinte, uma excelente elipse temporal). Apesar de viver na maior miséria, passar as maiores privações, coexistir com os maiores dramas, nunca apaga do rosto um sorriso, nunca desespera, procura sempre ultrapassar as dificuldades e encontrar uma solução. Não só para si, como para todos os que o rodeiam. E quem o rodeia são pobres miseráveis, sem nada a que se agarrarem, mas por vezes egoístas e mesquinhos. Totò a todos se mostra prestável, a todos ajuda, a todos incute uma esperança desmedida no amanhã. Totò gosta de viver e gosta de saber os seus semelhantes o mais felizes possível.
Para isso transforma radicalmente o bairro da lata onde vive, “urbaniza-o”, cria ruas e sistematiza as tarefas, dá nomes educativos às ruas e praças, ajuda cada pessoa como pode, e certamente que o seu sorriso permanente é uma das mais preciosas benesses. É contagiante e propaga-se pelo bairro, desencadeando reacções em cadeia. Até ao dia em que o baldio abandonado onde se encontra o bairro da lata se transforma numa apetecível jazida de petróleo, que desperta a cobiça dos capitalistas habituais que aparecem em bando, rodeados de polícias, para reivindicarem o terreno e expulsarem os miseráveis que ali habitam. Mas aí a parábola torna-se mais contundente. A velha Lolotta, que entretanto tinha já, literalmente, viajado para os anjinhos, regressa com uma miraculosa pomba branca que faz realmente milagres. Nem sempre muito bem compreendidos pelos caprichosos mendigos que solicitam os mais descabidos prodígios. Se De Sica e Zavattini atingem com a sua crítica os poderosos que não recuam perante nada para multiplicarem o seu lucro, não é menos verdade que não hesitam em reprovar a falta de realismo desses pobres que gostam de ostentação e de luxo, e cuja principal ambição parece ser tornarem-se iguais aos capitalistas que combatem.


Impressionante é a lucidez da estrutura narrativa e o tom de quase comédia musical que por vezes se instala no filme e nos contagia a nós, espectadores. Esta é uma daquelas obras que procuram difundir a bondade e a fraternidade social, e consegue-o de uma forma que diríamos ingénua e pura, mas que atinge plenamente a ambição inicial. Sai-se do filme revigorado, tonificado pela presença desse espantoso Francesco Golisano que interpreta a personagem de Totò, uma daquelas figuras que nunca mais se esquecem e que os puros de espírito não deixarão seguramente de perseguir ao longo da vida. A lição de solidariedade, ao contrário do que possa parecer a uma primeira vista, ganha consistência e vigor por se expressar em forma de parábola, onde o “milagre” afinal é algo de profundamente humano e possível de alcançar: basta reunir esforços, acreditar na razão que nos assiste e lutar por ela. Podem dizer que não é voando sobre os céus de Milão, montado em paus de vassoura, que os problemas sociais se resolvem, mas é seguramente com o espírito amável, mas firme, de Totò, com a sua perseverança e alegria, com a sua generosidade aberta ao próximo, que muitos conflitos se podem dissolver na força da comunidade.
De Sica não foge à realidade dilacerante de uma cidade destruída pela guerra e por dificuldades económicas insustentáveis. A realidade que “Milagre em Milão” apresenta é desesperante e é o retrato vivido por Itália depois de terminada a onda megalómana e destrutiva do fascismo mussoliniano. Para derrotar esse monstro que assassinou vidas e esventrou cidades temos a inocência do olhar, a delicadeza do gesto, a ingenuidade da palavra de Totò que parece desconhecer o mal, a ganância, a vaidade, a violência de quem a ele se opõe. Totò vislumbra, para lá da triste e cinzenta realidade que o cerca, uma sociedade nova, fraterna, solidária, humana nos seus melhores momentos. É verdade que os pobres com quem Totò se cruzam são, na sua generalidade, maus, invejosos, ignorantes, egoístas, traidores. Mas o protagonista, uma personagem ideal, produto de um óbvio “milagre”, opõe-se a esta situação e procura projectar um novo horizonte. Será na fraternidade, na generosidade, na cumplicidade que se poderá construir o futuro. Eis como o “milagre” se pode ligar a algum pensamento marxista-leninista, já que muita da base do neo-realismo se encontra associado a uma teoria comunista da arte. Zavattini era comunista e De Sica, embora nunca o tenha sido, ao que se sabe, terá funcionado como “compagnon de route”.


O tom de comédia que critica habilmente usos e costumes, que vão da avidez dos milionários ao racismo dos pobres, da mesquinhez de Rappi, que trai companheiros por um casaco com gola de pele e um chapéu alto (um dos brilhantes trabalhos do Paolo Stoppa, um actor já nessa altura com uma prodigiosa carreira dispersa pelo teatro e pelo cinema, um dos raros profissionais a integrar o elenco do filme) à inveja de uns quantos e à ostentação de outros, esse tom de comédia é muito bem desenvolvido por De Sica, com recurso sobretudo a uma lirismo austero e a uma interpretação refreada e contida. Este tipo de parábola poderia desencadear uma vaga de mau gosto insuportável, mas tanto De Sica como os seus cúmplices conseguem o “milagre” de manter o filme num ritmo e numa toada que não só suporta bem as peripécias narradas, como as sustenta num nível deliciosamente bem-humorado, sem nunca perder a perspicácia crítica.
O realismo descarnado de “Ladrões de Bicicletas” cede aqui perante o maravilhoso e o poético, conseguindo, no entanto, ambas as obras participarem de um mesmo olhar, de uma mesma sensibilidade, de uma mesma inocência e pureza.


O MILAGRE DE MILÃO
Título original: Miracolo a Milano
Realização: Vittorio De Sica (Itália, 1951); Argumento: Vittorio De Sica, Suso Cecchi D'Amico, Mario Chiari, Adolfo Franci, Cesare Zavattini, segundo romance deste último ("Totò il buono"); Produção: Vittorio De Sica; Música: Alessandro Cicognini; Fotografia (p/b): G.R. Aldo; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção: Guido Fiorini; Direcção artística: Guido Fiorini; Guarda-roupa: Mario Chiari; Direcção de produção: Carmine Bologna, Nino Misiano, Umberto Scarpelli; Assistentes de realização: Luisa Alessandri, Umberto Scarpelli; Departamento de arte: Italo Tomassi; Som: Bruno Brunacci; Efeitos especiais: Enzo Barboni, Ned Mann, Václav Vích; Companhias de produção: Ente Nazionale Industrie Cinematografiche (ENIC), Produzioni De Sica; Intérpretes: Emma Gramatica (a velha Lolotta), Francesco Golisano (Totò), Paolo Stoppa (Rappi), Guglielmo Barnabò (Mobbi), Brunella Bovo (Edvige), Anna Carena (Marta), Alba Arnova, Flora Cambi, Virgilio Riento, Arturo Bragaglia, Erminio Spalla, Riccardo Bertazzolo, Checco Rissone, Angelo Prioli, Giuseppe Berardi, Gianni Branduani, Enzo Furlai, Jerome Johnson, Renato Navarrini, Egisto Olivieri, Luigi Ponzoni, Piero Salonne, Jubal Schembri, Walter Scherer, Giuseppe Spalla, etc. Duração: 100 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação etária: M/12 anos; Estreia em Portugal: 15 de Janeiro de 1952. 

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