domingo, 19 de fevereiro de 2017

O GRITO



O GRITO (1957)

Cineasta da “alienação”, como era considerado, com justeza, aliás, pela generalidade da crítica nos anos 60, Antonioni afasta-se, todavia, de uma análise esquemática e maniqueísta da sociedade e das suas crises, por um aprofundar dos sentimentos individuais e um estudo da sua deterioração progressiva, em confronto com essa mesma sociedade. Isso é já manifesto em obras como “Cronaca di Un Amore” ou “La Signora Senza Camelie”, menos em “As Amigas”, mas torna-se mais claro numa película como “O Grito”, uma das suas obras-primas indiscutíveis, um título que é um marco na sua filmografia, antecedendo, e dando ligação à sua tetralogia imediata, que o irá impor como um dos maiores cineastas do pós-guerra.
Análise de uma crise, estudo minucioso de uma desagregação emocional, “O Grito” abre novas perspectivas ao cinema italiano, caldeando, em imagens sublimes, a interioridade de uma personagem e o clima social de um tempo. Admirável, como a fotografia, a preto e branco, de Gianni Di Vennanzo.
Interessante será reavivar a recepção crítica que uma tal obra teve na época da sua estreia. Analisar “crises existenciais” e turbulências emocionais, com recurso a adultérios, traições, solidões e suicídios, era tarefa que se reservava à burguesia em perda de valores ou em perturbação identitária. Colocar um operário nessa condição não seria insólito (veja-se o caso de “Obsessão”, de Visconti, que é muito anterior a “O Grito”), mas não deixava de ser preocupante, sobretudo para aqueles que achavam que a classe operária devia ocupar-se sobretudo de movimentos sociais reivindicativos, de grandes projectos colectivos, esquecendo os casos pessoais e os dramas individuais. 


Numa crítica pertinente de Manuel Pina, publicada aquando da estreia de "O Grito", rebatendo os frágeis e esquemáticos raciocínios de Guido Aristarco (historiador do cinema indubitavelmente importante, mas demasiado manietado por um método crítico que não lhe permitia analisar em profundidade o que se estava a processar na Itália, no declinar da década de 50), podia ler-se: "Nos filmes anteriores de Antonioni estivemos sempre em presença de uma crise; mas até aqui as histórias situavam-se na burguesia. Parece não se perdoar a Antonioni tornar extensivo à classe operária o conceito de alienação. A verdade é que existe uma diferença: ao passo que nos filmes anteriores a crise nos era dada como situação normal, aqui ela apresenta-se-nos como excepção no meio de indivíduos empenhados em tarefas de outro tipo, mas a excepção que representa Aldo não é tão pouco generalizada que não mereça atenção; e, acima de tudo, torna-se particularmente importante pelas consequências que pode acarretar".
E mais adiante: "Por isso não me parece acidental, como pretende Aristarco, a escolha de um operário para figura central da história. Antonioni fê-lo deliberadamente, com o intuito de provar a falsidade do raciocínio elementar que pretende que a consciência de um indivíduo é rigidamente determinada pela classe a que pertence. Esta é de resto também a opinião de Renzi. "O Grito" oferece-se assim como uma demonstração do que pode acontecer quando um indivíduo, incapaz de resolver o conflito indivíduo-sociedade, coloca em primeiro plano os seus problemas pessoais: tal indivíduo fugirá sempre sistematicamente à necessidade da escolha, e o caminho que percorre conduzi-lo-á necessariamente à autodestruição".


Estas longas citações colocam-nos imediatamente no centro do problema levantado por "II Grido". Depois de ter sido abandonado pela amante (Irma), Aldo, um operário especializado de uma fábrica de açúcar da planície do Pó, deixa a sua aldeia natal, acompanhado pela filha. Deambula ao longo do rio, visita uma antiga namorada, vive depois durante alguns dias com a proprietária de uma bomba de gasolina, finalmente com uma prostituta. A todas abandona, regressando à sua aldeia, onde vem a saber que Irma tem já um filho de outro homem. Ao atravessar o povoado, verifica que os seus antigos colegas andam envolvidos em manifestações contra a expropriação de uns terrenos locais. Aldo, porém, está cansado. Ele próprio o confessa. Por seu turno, os antigos companheiros já nada têm a ver com ele. Um deles chega a dizer-lhe: "Depois falarei contigo. Agora tenho outras coisas que fazer". Tornado um estranho para si e para os outros, Aldo sobe ao alto da sua antiga torre e suicida-se. O grito de Irma não acusará eco. Lá longe, a multidão continuará a correr noutra direcção.
Análise de uma crise, "O Grito" é seguramente um dos melhores filmes de Michelangelo Antonioni. Embora cientes da importância de obras futuras, como "A Noite", "O Eclipse", "O Deserto Vermelho” ou "Blow-Up", embora admitindo uma ulterior depuração estilística, a verdade é que "O Grito" permanece com um lugar à parte, destacando-se pela sua sinceridade narrativa, por todo esse longo caminho que conduzirá o protagonista à sua autodestruição, depois de ter atravessado as paisagens lamacentas e enevoadas do delta do Pó. O cineasta da lucidez (como se lhe chamou) já ultrapassa em "O Grito" as coordenadas de um realismo estático, atento unicamente aos grandes momentos da história italiana. Com "II Grido", Antonioni abre novas perspectivas à cinematografia italiana, paralisada sob as novas ameaças do neo-capitalismo. Como consequência directa da mutação da realidade social italiana nos últimos anos, haveria que fazê-la acompanhar por idêntico processo crítico. Isso tentou Antonioni. Poucas vezes, porém, com a clareza e a simplicidade expositiva deste "O Grito", que, por si só, bastava para impor a reputação de um dos maiores cineastas contemporâneos.
Indissociavelmente ligados aos propósitos do autor vamos encontrar todos os elementos constitutivos da obra. A fotografia de Gianni di Vennanzo, a montagem de Eraldo da Roma, a música de Giovanni Fusco, ou a interpretação, tudo se conjuga de forma a oferecer ao espectador uma imagem aproximada de um estado psicológico e social.



O GRITO
Título original: Il Grido

Realização: Michelangelo Antonioni (Itália, 1957); Argumento: Michelangelo Antonioni (ideia), Elio Bartolini, Ennio De Concini; Produção: Franco Cancellieri, Danilo Marciani, Ralph Pinto; Música: Giovanni Fusco; Fotografia (p/b): Gianni Di Venanzo; Montagem: Eraldo Da Roma; Direcção artística: Franco Fontana; Guarda-roupa: Pia Marchesi; Assistente de realização: Luigi Vanzi; Som: Vittorio Trentino; Companhias de produção: SpA Cinematografica, Robert Alexander Productions; Intérpretes: Seteve Cochran, Alida Valli, Dorian Gray, Betsy Blair, Lynn Shaw, Gabrieíla Pallota, Gaetano Mattencci, Guerrino Campanii, etc. Produção: Franco Cancellie-ri/SPA Cinematográfica; Intérpretes: Steve Cochran (Aldo), Alida Valli (Irma), Betsy Blair (Elvia), Gabriella Pallotta (Edera), Dorian Gray (Virginia), Lynn Shaw (Andreina), Mirna Girardi (Rosina), Pina Boldrini (Lina), Guerrino Campanilli, Pietro Corvelatti, Lilia Landi, Gaetano Matteucci, Elli Parvo, etc. Duração: 102 minutos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes (DVD); Classificação etária: M / 12 anos; Data de estreia em Portugal: 9 de Outubro de 1958.

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